quinta-feira, fevereiro 08, 2007

UM GOVERNO ARROGANTE QUE SE RECUSA A NEGOCIAR E UM ESTATUTO DISCIPLINAR PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MAIS PRÓPRIO DO REGIME ANTERIOR AO 25 DE ABRIL

RESUMO DESTE ESTUDO

O governo apresentou aos sindicatos da Administração Pública um calendário de “negociações” que mostra claramente que não pretende negociar seja o que for. É mais uma prova da arrogância deste governo. De acordo com esse calendário, teria se ser “negociado” até ao dia 12 de Junho os seguintes diplomas: (1) O novo “Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem funções públicas”, com 82 artigos, em apenas duas reuniões, ou seja, em 4 horas; (2) A Tabela de remunerações única para a Administração Pública com 115 posições remuneratórias numa única reunião, ou seja, em 2 horas; (3) A fusão das actuais 1.669 carreiras e categorias do regime geral da Administração Pública em apenas três carreiras, numa única reunião, ou seja, em 2 horas; (4) O Regime de Trabalho em funções públicas, também conhecido como o Código do Emprego Público, que é o Código do Trabalho da Administração Pública, cujo conteúdo se desconhece porque ainda não foi entregue aos sindicatos mas que, segundo o governo, tem mais de 800 artigos, em apenas quatro reuniões, ou seja, em 8 horas, o que daria uma média de mais de 100 artigos por hora; (5) A Proposta de Lei sobre a Protecção Social, cujo conteúdo ainda não se conhece, pois o projecto ainda não foi entregue aos sindicatos, em apenas duas reuniões, ou seja, em 4 horas. Perante este calendário os comentários parecem desnecessários. O projecto de “Estatuto Disciplinar dos trabalhadores que exercem funções públicas”, que foi entregue pelo governo aos sindicatos, contem normas que são mais próprias do regime que vigorou em Portugal até ao 25 de Abril, do que de um regime democrático. De acordo com o projecto, o governo pretende ter poder para punir um trabalhador ou um aposentado mesmo depois destes terem saído da Administração Pública. Assim, um trabalhador que saia da Administração Pública, que vá trabalhar, por ex. durante 15 anos para o sector privado, e que, ao fim deste período, ingresse de novo na Administração Pública poderia ser punido por uma infracção disciplinar que cometeu 15 anos antes quando esteve na Administração Pública. Contrariamente ao que sucede no sector privado que, de acordo com o nº1 do artº 365 do Código do Trabalho, o poder disciplinar do empregador termina com a cessação do contrato de trabalho, o governo pretende prolongar esse poder para além da cessação do contrato de trabalho, para poder punir o trabalhador se ele voltar a ingressar de novo na Administração Pública. Em relação aos reformados e aposentados, a situação é ainda muito mais grave porque o governo pretende ter poder para lhe tirar os meios de sobrevivência. Assim, de acordo com o projecto de Estatuto Disciplinar do governo, o reformado ou o aposentado poderia ser punido com a perda de pensão até dois anos por uma infracção disciplinar cometida durante o período em que esteve no activo. Mas o projecto de Estatuto Disciplinar do governo não se limita apenas a isto. Pretende introduzir o despedimento com base em duas avaliações negativas. Segundo a alínea h) do artº 18º do projecto, as penas de demissão e de despedimento são aplicáveis nomeadamente aos trabalhadores que “sendo nomeados … cometam reiterada violação do dever de zelo, manifestada na obtenção de duas avaliações do desempenho negativas consecutivas…”. E não se pense que isto é só para os trabalhadores com vinculo de nomeação. De acordo com o artº 3 das chamadas “Normas preambulares” do projecto de Estatuto Disciplinar, o disposto no artº 18º, ou seja, a pena de demissão ou de despedimento devido a duas avaliações negativas, é também aplicável aos trabalhadores que, por força da “Lei de Vínculos, carreiras e remunerações” , passem da situação de nomeados para a modalidade de contrato de trabalho por tempo indeterminado, o que abrange mais de 90% dos trabalhadores da Administração Pública. Para que se possa ficar com uma ideia clara das verdadeiras consequências desta norma, interessa ter presente também a “Lei de Vínculos, carreiras e remunerações” assim como o decreto-lei do governo sobre a fusão das carreiras. De acordo com estes diplomas, as 1669 carreiras e categorias actualmente existentes são extintas, e os trabalhadores que estão nestas carreiras são “encaixados” em apenas três carreiras – Técnico superior, Assistente Técnico, e Assistente Operacional somente com uma categoria cada uma delas, se se excluir os cargos de chefia – o que determinará a polivalência absoluta no interior de cada uma daquelas três carreiras. Por isso, será sempre fácil a qualquer chefia, exigir a um trabalhador a execução de uma tarefa nova que ele não tenha experiência e mesmo habilitações académicas, atribuindo-lhe facilmente uma avaliação negativa. Com estas duas leis o governo pretende introduzir, objectivamente, um regime de terror na Administração Pública, em que o trabalhador viverá sob a ameaça constante de ser demitido ou despedido. E o poder para aplicar estas penas passa para o dirigente máximo do órgão ou serviço, competindo ao membro do governo a aplicação de penas somente ao dirigente máximo. Desta forma o poder das chefias torna-se quase absoluto, se se tiver presente o que resulta já da “Lei de Vínculos , carreiras e remunerações”.

O que está suceder na Administração Pública não interessa apenas aos trabalhadores da função pública, mas sim a todos os trabalhadores portugueses. Em primeiro lugar, porque é de prever que sirva de paradigma para o sector privado, já que as entidades patronais vão começar a reivindicar o mesmo para o seu sector. Em segundo lugar, porque tudo isto irá pôr em causa o acesso a serviços públicos essenciais. O governo de Sócrates acabou de apresentar aos sindicatos um Projecto de Proposta de Lei que visa aprovar o “Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem funções públicas”, o qual,

como consta da “Exposição de motivos inicial”, é “aplicável a todos os trabalhadores que exerçam funções públicas, qualquer que seja a modalidade de constituição da sua relação jurídica de emprego público”, e não apenas aos trabalhadores com vinculo de nomeação, como sucedia até aqui. E este projecto de Estatuto Disciplinar contém normas, por um lado, mais próprias do regime que vigorou em Portugal até ao 25 de Abril e, por outro lado, muito mais gravosas do que as contidas no Código do Trabalho, regime que, afirma o governo, se pretender aproximar, criando assim uma situação de desigualdade, para pior, entre os trabalhadores da Administração Pública e os trabalhadores do sector privado. É isso o que se vai provar neste estudo analisando algumas das normas mais importantes do projecto do governo.

UM GOVERNO ARROGANTE QUE SE RECUSA A NEGOCIAR

Um dos aspectos que caracteriza este governo é a sua arrogância, o convencimento de que só ele possui a verdade, e a consequente recusa em ter uma negociação séria e verdadeira com as associações sindicais.

O calendário de “negociações” apresentado pelo governo aos sindicatos dos trabalhadores da Administração Pública em 26.3.2007 é prova mais cabal da arrogância deste governo. De acordo com esse calendário, teria de ser “negociado” até ao dia 12 de Junho os seguintes diplomas: (1) O novo “Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem funções públicas”, com 82 artigos, em apenas duas reuniões, ou seja, em 4 horas; (2) A Tabela de remunerações única para a Administração Pública com 115 posições remuneratórias numa única reunião, ou seja, em 2 horas; (3) A fusão das actuais 1.669 carreiras e categorias do regime geral da Administração Pública a apenas três carreiras, numa única reunião, ou seja, em 2 horas; (4) O Regime de Trabalho em funções públicas, também conhecido como o Código do Emprego Público, já que é uma espécie de Código do Trabalho para a Administração Pública, cujo conteúdo se desconhece porque ainda não foi entregue aos sindicatos mas que, segundo o governo, tem mais de 800 artigos, em apenas quatro reuniões, ou seja, em 8 horas, o que daria uma média de mais de 100 artigos por hora; (5) A Proposta de Lei sobre a Protecção Social, cujo conteúdo ainda não se conhece, pois o projecto ainda não foi entregue aos sindicatos, em apenas duas reuniões, ou seja, em 4 horas.

Para agravar tudo isto, o governo deixou propositadamente deslizar a apresentação dos projectos aos sindicatos para o fim do mês de Março, quando se tinha comprometido em entregá-los no inicio de Janeiro com o claro propósito de impedir, por um lado, qualquer negociação séria e, por outro lado, que os trabalhadores conhecessem o conteúdo e se apercebessem das consequências daqueles diplomas. Fica assim claro, que o governo com uma proposta de calendário desta natureza, o que pretende é um simulacro de negociações.

O GOVERNO PRETENDE PODER PUNIR O TRABALHADOR MESMO DEPOIS DE TER CESSADO O CONTRATO DE TRABALHO OU DESTE SE TER APOSENTADO OU REFORMADO

Um principio fundamental do direito é que o poder disciplinar do empregador sobre o trabalhador acaba com cessação do contrato de trabalho. O próprio Código do Trabalho, no nº 1 do artº 366 consagra este principio, ao estabelecer o seguinte: “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador que se encontre ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho”. Portanto, a partir do momento em que cesse o contrato de trabalho, ou seja, desde a data em que o trabalhador saia da empresa, a entidade patronal já não tem poder disciplinar sobre o trabalhador, isto é, já não poderá puni-lo por uma infracção disciplinar cometida enquanto esteve na empresa.

O governo apresentou aos sindicatos um projecto de Estatuto Disciplinar que viola aquele principio fundamental e elementar de direito. De acordo com o projecto apresentado, o governo pretende, após a saída do trabalhador da Administração Pública para ir trabalhar no sector privado ou por passar à situação de aposentado ou reformado, ter poder disciplinar para aplicar ao trabalhador uma sanção que poderá ser pecuniária ou de outra natureza.

Assim, de acordo com o nº4 do artº 4º do projecto de Estatuto Disciplinar do governo, “ a cessação da relação de emprego público ou a alteração da situação jurídico-funcional não impedem a punição por infracções cometidas no exercício da função”. Isto significa que o trabalhador que tenha deixado a Administração Pública poderá ser punido por uma infracção cometida no período em que ainda estava na Administração Pública. O governo pretende continuar a ter poder disciplinar sobre o trabalhador, mesmo depois deste ter saído da Administração Pública.

O ESPIRITO PERSECUTÓRIO DO ESTATUTO DISCIPLINAR DO GOVERNO

Em relação aos trabalhadores activos que saíram da Administração Pública indo trabalhar no sector privado, de acordo com o nº1 do artº 12º do projecto de Estatuto Disciplinar do governo, “em caso de cessação do contrato de trabalho as penas são executadas desde que os trabalhadores constituam nova relação jurídica de emprego público ou passem à situação de aposentação ou reforma”.

Tudo isto torna-se mais claro se se tiver presente duas outras normas contidas no projecto de Estatuto Disciplinar do Governo. Assim, de acordo com o nº1 do artº 12º deste projecto, “em caso de cessação da relação jurídica de emprego público, as penas previstas nas alíneas b) a d) do nº1 do artº 12º, ou seja, as penas de multa, suspensão, demissão ou despedimento, são executadas desde que os trabalhadores constituam nova relação jurídica de emprego publico ou passem à situação de aposentação ou reformado”. Isto significa que se um trabalhador sair da Administração Pública e vá trabalhar no sector privado, por ex. durante 15 anos, se após esse prazo concorrer e ingressar de novo na Administração Pública então, nessa altura, o trabalhador será punido pela infracção que cometeu 15 anos antes, ou seja, poderá ser multado, demitido ou despedido.

Em relação aos aposentados e reformados, de acordo com o nº2 do artº 12 do mesmo projecto de Estatuto, “as penas são aplicadas nos seguintes termos: (a) A de multa não pode exceder o valor correspondente a 10 dias de pensão por ano; (b) A de suspensão é substituída pela perda de pensão por igual tempo; (c) As de demissão e de despedimento são substituídas pela perda de pensão por período de 2 anos”. Isto significa que um aposentado ou um reformado poderá estar dois anos sem receber a sua pensão, ou seja, ficará sem meios para poder sobreviver.

Em tudo isto é preciso ter presente que se está apenas a tratar da infracção disciplinar, pois se tiver cometido um crime, é evidente que, como qualquer português, continua sujeito aos tribunais.

DESPEDIMENTO COM BASE EM DUAS AVALIAÇÕES NEGATIVAS

Segundo a alínea h) do artº 18º do projecto de Estatuto Disciplinar do governo, as penas de demissão e de despedimento são aplicáveis nomeadamente aos trabalhadores que “sendo nomeados … cometam reiterada violação do dever de zelo, manifestada na obtenção de duas avaliações do desempenho negativas consecutivas…”. E não se pense que isto é só para os trabalhadores com vinculo de nomeação. De acordo com o artº 3, das chamadas “Normas preambulares” do projecto de Estatuto Disciplinar, o disposto no artº 18º, ou seja, a pena de demissão ou de despedimento devido a duas avaliações negativas, é também aplicável aos trabalhadores que, por força do nº 4 do artº 88 da Lei 12-A/2008 (Lei de Vínculos, carreiras e remunerações”), passem da situação de nomeados para a modalidade de contrato de trabalho por tempo indeterminado, que abrange mais de 90% dos trabalhadores actuais da Administração Pública..

Para que se possa ficar com uma ideia clara das verdadeiras consequências desta norma, interessa ter presente a “Lei de Vínculos, carreiras e remunerações” e também o decreto-lei do governo sobre a fusão das carreiras. De acordo com estes dois diplomas, as 1669 carreiras e categorias actualmente existentes são extintas, e os trabalhadores que estão nestas carreiras são “encaixados” em apenas três carreiras – Técnico superior, Assistente Técnico, e Assistente Operacional somente com uma categoria cada uma delas, se se excluir os cargos de chefia – o que determinará a polivalência absoluta no interior de cada uma daquelas três careiras. Por isso, será sempre fácil a qualquer chefia, mesmo dando “formação adequada” , exigir ao trabalhador a execução de uma tarefa nova que ela não tenha experiência, atribuindo-lhe facilmente uma avaliação negativa. Com estas duas leis o governo introduz, objectivamente, um regime de terror na Administração Pública, em que o trabalhador viverá sob a ameaça constante de ser demitido ou despedido.

O REFORÇO DO PODER DISCIPLINAR DAS CHEFIAS

De acordo com o artº 14º do projecto de Estatuto Disciplinar, a competência para aplicar a pena de repreensão escrita é de todos os superiores hierárquicos em relação aos seus subordinados; a competência para aplicar as penas de suspensão, de demissão e despedimento é do dirigente máximo do órgão ou serviço; e compete apenas ao membro do governo respectivo a aplicação de qualquer pena aos dirigentes máximo do órgão ou serviço. Nas autarquias locais, associações e federações de municípios, bem como nos serviços municipalizados a competência para aplicar as penas é dos órgãos executivos e dos conselhos de administração. Desta forma é reforçado ainda mais o poder das chefias que ficam com poder para despedir.

Eugénio da Rosa

Economista

29.3.2008

NOTA: Em 28.3.2008, o governo enviou aos sindicatos um projecto de “Tabela remuneratória única” para a Administração Pública diferente daquela que antes tinha divulgado através dos órgãos de comunicação social. Na versão anterior, a única carreira em que a remuneração máxima era superior às actuais era na carreira de Técnico Superior, já que nas carreiras de “Assistente Técnico “ e de “Assistente Operacional” os valores máximos destas carreiras eram inferiores aos valores máximos de remunerações que podiam alcançar os trabalhadores das carreiras que iriam ser integradas naquelas duas carreiras. Na versão enviada aos sindicatos no dia 28.3.2008, a remuneração máxima de Técnico Superior sofre uma redução significativa pois passa de 3.569,63 euros (valor da versão do governo divulgada pela comunicação social) para 3.169,30 euros (versão enviada aos sindicatos em 28.3.2008), portanto sofre uma redução de 400,33 euros por mês (ver nosso estudo “O GOVERNO PRTENDE ACABAR COM AS CARREIRAS”). Parece que a versão anterior só tinha como o objectivo que os media pudessem divulgar, como o fizeram, que os Técnicos Superiores iriam ser beneficiados com a proposta de Tabela remuneratória máxima “ do Governo. Cumprido esse objectivo o governo apressou-se a reduzir o valor da remuneração máxima de “Técnico Superior”.

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